“Por mim se vai das dores à morada,
Por mim se vai ao padecer eterno,
Por mim se vai à gente condenada. […]
No existir, ser nenhum a mim se avança,
Não sendo eterno, e eu eternal perduro:
Deixai, ó vós que entrais, toda a esperança!”
A frase está gravada no alto da entrada que conduz ao inferno, conforme descrito na narrativa fictícia do escritor e poeta florentino, Dante Alighieri (1265-1321), em sua magnum opus, A Divina Comédia. Os versos mencionados são uma passagem da tradução feita por José Pedro Xavier Pinheiro.
A narrativa do autor italiano é uma representação simbólica da fé cristã, que concebe o inferno como um local terrível onde os transgressores enfrentam punições severas.
Curiosamente, a Bíblia oferece escassa menção ao inferno como um local de tormento e castigo. Em vez disso, a noção do inferno como o conhecemos hoje é uma amalgama de diversas tradições e lendas, abrangendo desde as crenças egípcias sobre a vida após a morte até o submundo dos mortos na mitologia grega, incluindo também elementos dos mitos babilônicos.
“O inferno como um lugar cheio de fogo e demônios que castigam os pecadores é um conceito exclusivo da tradição judaico-cristã, mas se forma a partir da sistematização de histórias e ideias que surgiram no que conhecemos como Crescente Fértil”, explicou Juan David Tobón Cano, historiador e teólogo da Universidade San Buenaventura, na Colômbia, à BBC News Mundo.
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Tobón observa que a concepção do inferno emerge como uma resposta à dificuldade humana em explicar o caos.
“Na observação do Universo, começaram a ser percebidos fenômenos compreensíveis — tempestades, terremotos, etc. — e começaram a vincular isso ao submundo”, diz.
Todas essas concepções convergiram para a formulação de crenças na existência de uma vida após a morte nas civilizações egípcia e mesopotâmica, posteriormente incorporadas pelos antigos hebreus.

Sean McDonough, professor no Instituto Teológico Gordon-Conwell, nos Estados Unidos, explica que “nas primeiras versões da Bíblia hebraica, essa noção de um lugar para onde vão os mortos tem um nome: Sheol. Mas esse é apenas um lugar para onde vão os mortos, nada mais acontece”.
“Aos poucos, o conceito absoluto de Sheol vai mudando. De local de mortos, passou a ser considerado um local temporário”.
“Depois de um tempo ali, os mortos que haviam sido justos e cumpriram a lei iam para a presença de Deus, ao passo que os que não o fizeram iam para um lugar repleto de fogo purificador, conhecido como Gehena.”
Este aspecto é crucial para compreender as disparidades que emergem nas concepções relativas à vida além da morte.
Segundo Tobón, “uma das grandes diferenças entre o judaísmo e as outras religiões é que eles acreditam que Deus faz uma aliança com eles e faz isso por meio de uma lei, que são os Dez Mandamentos”.
“Isso cria o conceito de recompensa e punição ‘divinas’. Aqueles que obedecem à lei serão recompensados e aqueles que não o fizerem serão punidos. Isso não era tão evidente em outras culturas.”
McDonough destaca que o próprio Jesus enfatiza o inferno como lugar de punição.
“Jesus menciona uma ‘fornalha ardente’ onde os ímpios sofrerão tristeza e desespero e onde haverá ‘choro e ranger de dentes'”, descreve McDonough.
“Essas palavras serão fundamentais para o conceito de inferno que veremos na Idade Média e que continua até hoje.”

Os estudiosos esclarecem que o termo latino “infernum” começa a ser utilizado nas primeiras traduções do hebraico e do grego para o latim. Gradualmente, essa palavra substitui termos como “Sheol” e “Hades”, que constituem referências evidentes ao submundo nas civilizações antigas. Tobón explica que os primeiros cristãos assimilaram ao novo credo elementos do pensamento grego.
“Um elemento que eles incorporam é o conceito platônico de que o ser humano é composto de corpo e alma — e esse será o princípio que [resulta na ideia de que] as almas deverão ir para algum lugar após a morte”, afirma.
Inicia-se, assim, um debate teológico que, por volta do século VI, culmina na consolidação da concepção de que o inferno é um local onde as almas não arrependidas enfrentam um castigo eterno.
“Deve ficar claro que, segundo [a interpretação dos] os teólogos, o principal castigo é não estar na presença de Deus. O fogo e a tortura são algo mais simbólico”, diz McDonough.
Esse conceito de um local repleto de horrores torna-se amplamente difundido com a obra de Dante Alighieri no século XIV.
“Não que Dante tenha definido o inferno, mas ele reuniu de forma magistral todas as noções que existiam naquela época sobre esse lugar e digamos que estabelece um lugar-comum: é um lugar onde se sofre eternamente”, explica Tobón.
Com o passar do tempo, e em decorrência da resposta dos crentes e da influência de várias correntes teológicas, a concepção do inferno foi gradualmente evoluindo.
O Catecismo da Igreja Católica, por exemplo, diz: “A doutrina da Igreja afirma a existência do Inferno e a sua eternidade. As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente, após a morte, aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, ‘o fogo eterno’.”

Segundo os especialistas consultados pela BBC News Mundo, as representações do submundo em outras religiões e culturas frequentemente denotam um local de descanso para as almas, em vez de serem concebidos como locais de punição.
Por exemplo, no budismo, há a noção de Naraka, um submundo caracterizado como um local de tormento. No entanto, esses lugares geralmente não são considerados definitivos, mas sim transitórios.
No Islã, o Alcorão menciona repetidamente um “lugar de fogo”, enquanto há uma tradição que sugere que as almas dos infiéis serão enviadas para Jahannam, uma versão do inferno.
Tobón também destaca exemplos provenientes de povos indígenas do continente americano, como o Xibalbá, o submundo maia acessível através de grandes poços de água conhecidos como cenotes.
“É o submundo, onde há tormento, mas não é um castigo por não se cumprir a lei de um deus, é o lugar para onde vão todos os homens após a morte”, explica.
“Já para os muíscas (ou chibchas), que viveram na Colômbia, o submundo era um lugar belo — na realidade, ele é descrito como um lugar ‘tão verde como a cor das esmeraldas’.”
Via: BBC